terça-feira, 1 de outubro de 2013

Memórias da Vida Ideal #1

O relógio apitou mais uma vez. Do outro quarto, veio uma batida na parede e um grunhido abafado. A terceira pancada acordou-o. Ele abriu os olhos e resmungou, enquanto a cama chamava-o de volta com sua voz adocidada. Ele se desvencilhou dos braços do lençol e tentou caminhar enquanto cambaleava até a janela. Abriu uma fresta da cortina e sentiu o tímido sol de outubro aquecer seu rosto. Era o primeiro dia do mês.

Ele esticou o braço e desligou o celular. Eram 8:25. A aula estava no auge. Ele foi até o banheiro, escovou os dentes. Colocou um short, uma camiseta e saiu pela porta do quarto. Andou pela garagem e pegou sua querida Ermengarda. Abriu o portão branco e sentou sobre ela. Ela era linda. Negra, suas curvas poderosas seguravam um belo par de rodas aro 17. Era o suficiente para disfarçar a total falta de freio ou as marchas duras. Juntos, eles sonhavam em viajar o mundo. Sair da Patagônia e quem sabe um dia bater a mão na parede da casa do velho Nicolau.

Em questão de minutos, lá estava ele, prendendo Ermengarda num poste sujo qualquer, e dando um tapinha de despedida em seu traseiro. Entrou na sala e viu a bela cena a sua frente. Um ou dois rostos virados para si, mas o mais lindo estava logo ali. Ela olhou para ele, sorrindo. Seu perfume era sentido de longe. Ele acenou para ela e logo se encontraram. Aquela era a carteira mais confortável da sala e estava ali, todinha para ele. 

Sem se ater à timidez, largou a mochila no chão e jogou-se sobre sua amada carteira. A cantoria inabalável da Aula de Alguma Coisa já havia começado. A voz do professor era considerada canto lírico pelos próprios anjos. Era um convite à Morpheu, que já flutuava pela sala, empunhando seu pó mágico. Alguns já caíam sobre o efeito do canto angelical. Ele não demorou muito para repetir o gesto de homenagem de seus colegas àquela bela estrofe.

Seus olhos se abriram com o tumulto de pessoas andando ao seu redor. Ele pegou sua mochila, olhou para o celular e saiu da sala. Ermengarda corcoveava de emoção em ver seu dono. Ela deu adeus ao poste sujo. O rapaz montou sobre sua companheira e sumiram no horizonte vespertino. O dia ainda tinha muito a oferecer, muitos amigos a visitar. O sol aquecia sua nuca e ele era jovem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário