terça-feira, 17 de abril de 2018

A donzela salva o cavaleiro

Ele mordeu seu lanche revirando os olhos, tanto pelo prazer de experimentar aquela obra de arte culinária como pelo desprazer em ouvir a enxurrada de reclamações que atingia seus ouvidos.

Em seu cérebro, era como se uma grande batalha estivesse ocorrendo entre palavras e sabores. Em alguns momentos, as palavras atacavam com força e era impossível não olhar a fonte delas, sentada ao seu lado.

Porém, as dentadas no hambúrguer artesanal coberto de queijo gorgonzola e cebola caramelizada eram como um reforço às linhas de defesa do sabor, que logo se organizavam em uma ofensiva quase letal.

À procura de algo que decidisse a batalha de vez, os olhos dele encontraram os dela. Um novo agente entrou na luta: seu coração bateu mais forte. Eram olhos simples, mas o que importava era o que vinha ao redor dos olhos. Um pequeno sorriso, cabelos penteados de lado, deixando uma cachoeira de cabelos louros e encaracolados caindo pra cá e mostrando a orelha e o pescoço pra lá.

Ela parecia se divertir com a batalha que ocorria dentro dele. Será que era tão óbvio assim?

“Venha comigo, eu te ajudo”, ele a imaginou dizendo. Que aroma teriam aqueles cabelos? Que gosto teriam seus lábios? Quão macia e quente seria a bronzeada pele?

Sensações demais, justamente o que ele precisava para desligar da torrente infindável de sons. A batalha acabou, pelo menos dentro daquela cabecinha imaginativa. Minutos depois, ele nem se lembraria do significado das palavras.

O tempo passou e a refeição terminou. Novos olhares foram trocados e ele sabia que a recíproca era verdadeira. Agora, como agir? O que fazer?

Nada, obviamente. Apenas pensar nos próximos versos a escrever.

Na parede de espelhos que se erguia atrás do balcão, ele viu toda a cena. Viu a si, viu as palavras voando em torno de sua cabeça como abelhas zangadas. E viu também uma donzela poderosa, salvando o cavaleiro indefeso.

A imagem se desfez quando a donzela chegou até ele e disse, “ a conta”. Ele tinha pedido a conta?

“Hm, você não cobrou um chopp”.

“Não está não”, ela respondeu, como se dizendo, “Você me paga depois”.

E na sua imaginação, uma nova onda de palavras atingiu o coração do dragão que ainda insistia em lutar. O cavaleiro tinha encontrado uma arma letal, capaz de atingir o coração de qualquer um.

Houve uma grande festa para comemorar a vitória naquela noite.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Ele era ele, e não era ela

Pela última vez, ela entrou no ônibus. Ela agradeceu que naquele dia, estava mais vazio, para que pudesse vê-lo entrando pela porta.

Ela já imaginava a cena. Estaria perto da janela, vendo-o dar sinal do lado de fora, daquele jeito despretensioso. Na verdade, o que ela mais gostava era de ver outra pessoa chamando o ônibus enquanto ele apenas esperava encostado em um poste, com olhar perdido em pensamentos, as mãos nos bolsos.

Enquanto a máquina encostava para pegar os passageiros, ela abriria o livro, arrumaria o cabelo e abaixaria a cabeça. Os olhos se levantariam somente quando ele também estivesse olhando.

Cruzar os olhares, admirar as jades brilhantes que a miravam. Sentir, pelo menos em imaginação, como seria aquela voz sussurrando “com licença”, sentir o toque de seu peito enquanto passava pelo corredor.

Ela sentiu o rosto ficar vermelho. O que estava pensando? Era só uma viagem de ônibus de vinte minutos. Decidiu pensar em seu namorado e esticou o braço para pegar o celular e desejar bom dia ao amado.

Mas antes que pudesse fazê-lo, lá estava ele, entrando no ônibus. Pegando a carteira, passando a catraca, encarando-a sem sorrir. Mas era sem sorrir mesmo? Hoje ele sorria. Um cantinho da boca indicava que seria um bom dia.

De repente o ônibus deu uma freada brusca, e ele se lembrou de quem era. Ele era ele, e não era ela. Ela lia seu livro, ela mexia no celular. A aliança no dedo. Se olhasse para ele uma só vez, já seria muito.

Seria só uma viagem de vinte minutos. Ele pensaria na namorada enquanto o ônibus encostava para pegar passageiros. Mesmo que ele arrumasse o cabelo, olhasse para lá e para cá. Talvez se sorrisse?

Mas ela não sorriria, não olharia e ele não encontraria as preciosas esmeraldas. Ele agradeceu que o ônibus estava vazio e caminhou até ela, pela primeira vez. Disse “com licença” e depositou o pequeno bilhete sobre as mãos dela.

Sorriu levemente e ela também sorriu. Ele encontrou suas tão desejadas esmeraldas.

Ele saiu do ônibus, pela última vez, um ponto antes do seu e do dela. Caminhou pela rua, despretenciosamente. As mãos nos bolsos.

Pela última vez.